domingo, 16 de janeiro de 2011

História da Dança

Não temos, hoje, clareza nem de quando e nem de que por que razões o homem dançou pela primeira vez, no entanto na medida em a arqueologia consegue traduzir as inscrições dos “povos pré-históricos”, ela nos indica a existência da dança como parte integrante de cerimônias religiosas, nos permitindo considerar a possibilidade de que a dança tenha nascido a partir ou de forma concomitante ao nascimento da religião. Foram encontradas gravuras de figuras dançando nas cavernas de Lascaux, na medida em que estes homens usavam estas inscrições para retratar aspectos importantes de seu dia-a-dia e de sua cultura, como os relacionados a caça, a morte e a rituais religiosos, podemos inferir que essas figuras dançantes fizessem parte destes rituais de cunho religioso, básicos para a sociedade de então.

A dança, tal como todas as manifestações artísticas, é fruto da necessidade de expressão do homem, de maneira que seu aparecimento se liga tanto às necessidades mais concretas dos homens quanto àquelas mais subjetivas. Assim, se a arquitetura nasce da necessidade da construção de moradias adequadas e seguras, a dança, provavelmente, veio da necessidade de exprimir a alegria ou de aplacar fúrias dos deuses.

Atualmente, podemos classificar a dança em três formas distintas: a étnica, a folclórica e a teatral. Acredita-se que as danças folclóricas são fruto da migração das danças religiosas de dentro dos templos para as praças públicas. Com esta migração estes ritos que antes eram permitidos só aos iniciados passaram a fazer parte do universo simbólico de uma população cada vez maior, desta maneira estas manifestações religiosas passaram a tomar um caráter de manifestações populares criando, então, um importante progresso na história da dança. Com esta mudança de caráter e com o passar do tempo, a ligação entre estas manifestações e os deuses foi se diluindo, e as danças, primeiramente religiosas hoje aparecem como folclóricas.

Estas danças ao longo do tempo passaram a adquirir “coreografias próprias” de maneira que possuem passos e gestos peculiares a cada uma, com significado próprio e que devem ser respeitados no contexto de cada cerimônia específica.

Devemos lembrar que durante vários séculos grande parte das manifestações de dança era privilégio do sexo masculino, de maneira que com só com o passar dos anos as mulheres passaram a participar ativamente das danças folclóricas. Ainda hoje, em certas regiões da União Soviética, como o Cáucaso, a Ucrânia e as Repúblicas Orientais, existem danças matrimoniais em que as mulheres só tomam parte passivamente: os homens dançam em torno delas, principalmente da noiva, sem que elas esbocem qualquer gesto. Este tipo de dança são claro exemplo do caminho das danças de cunho religioso que com o passar dos anos tomaram um caráter de danças folclóricas.

Também não podemos precisar claramente a origem da dança teatral. Sabemos que no Império Romano ocorriam espetáculos variados em que se apresentavam dançarinos, mas as indicações que temos nos levam a acreditar que suas apresentações se davam em tal formato que hoje as consideraríamos como apresentações circenses com acrobatas e saltimbancos.

Enquanto no Império Romano estas apresentações tinham um caráter circense, na Índia e na China as cortes contavam com os serviços de “escravos-bailarinos” que dançavam com o intuito de distrair os soberanos e da nobreza.

Durante vários séculos, essas manifestações de dança artística, se eram apresentadas apenas para as nobrezas de cada sociedade, apenas com o passar dos anos o povo foi tendo acesso às exibições, transformando-se assim em teatro popular aquilo que até então era privilégio de uma pequena minoria.

Dança e sua evolução: os rumos do ballet e a dança contemporânea
Eliana Caminada
A seguir, publicamos uma excelente palestra proferida por Eliana Caminada no IICS (Instituto Internacional de Ciências Sociais)
Senhoras e senhores, é um prazer estar aqui, nessa Instituição de importância nacional, pela primeira vez. E admitir que estou nervosa. Sim, porque venho de uma formação exclusivamente artística.
É verdade que conheço um pouco meu metiér, ou seja: minha profissão, o mundo em que vivo, é verdade que sequer me lembro da vida sem ballet, mas, ainda assim, a responsabilidade é muito grande e bailarinos são muito cônscios de suas responsabilidades. Preciso admitir que, passados tantos anos em que deixei de dançar, nunca me senti, falando ou escrevendo, tão à vontade quanto me sentia dançando. Mesmo não sendo maravilhosa.
Esta palestra é totalmente explanada com fragmentos de ballets, que ilustramos muitos tópicos do texto. Atendi, inclusive, muito mais à importância histórica dos trechos escolhidos do que à qualidade da imagem. Igualmente, a edição foi caseira, feita por mim, a partir de dezenas de DVDs.
Pensei bastante sobre se estava inserindo excesso de imagens, mas considerei que as palavras jamais cumprirão o papel de mostrar aquilo que foi criado pela dança para ser mostrado por corpos em movimento. Espero ter acertado. Ao menos, fiz um grande esforço nesse sentido.
1 - Refletindo sobre modernidade
Em se tratando de dança, ao refletir sobre modernidade, tanto podemos pensar em criações representativas do mundo contemporâneo, quanto, de forma paradoxal, associar a palavra ao ballet, à sua origem no momento histórico que se convencionou chamar de Idade Moderna, ao seu desenvolvimento, e a algumas das figuras mais paradigmáticas que construíram sua história.
Num estudo mais cuidadoso verificaremos que, entre o final do século XV e o século XVIII, quando o ballet se tornou autônomo, um volume significativo de transformações estabeleceu uma nova percepção de mundo que, em termos de dança, ainda se encontra representada, aqui ou ali, em nosso tempo. Ou seja: elementos da história do desenvolvimento do ballet ainda podem ser modernos e eles serão mencionados ao longo da palestra.
Ao contrário do que costumamos ouvir e aprender, o ballet não é estranho ao Brasil. O advento das Grandes Navegações, além das conhecidas conquistas e mudanças históricas que caracterizaram o período Renascentista, pode ter trazido em seu bojo, com o ballet, um projeto de colonização para as terras do Novo Mundo. As encenações baléticas foram, possivelmente, a primeira forma usada pelos jesuítas para catequisar os habitantes das Américas. É conhecida a realização dessas encenações nos colégios franceses daquela Ordem Católica.
Na página da Internet jesuite.com/histoire/danse pode-se ler que, em recente artigo publicado no semanário católico The Tablet, atribui-se aos jesuítas uma contribuição decisiva para o avanço da dança na corte de Luís XIV. Tal afirmação apenas confirma o registro de Eduardo Sucena em sua formidável pesquisa “A Dança Teatral no Brasil.”
2 - Refletindo sobre o desenvolvimento da dança no homem primitivo
Creio que seria interessante, primeiramente, descrever em linhas gerais o desenvolvimento da dança, manifestação livre de todos os povos, até chegarmos ao ballet, encenação oriunda de uma classe social, que pretendia legitimar sua recém conquistada aristocracia, através de um modelo de dança prática, regulamentada, de modo a atingir os fins pretendidos, mas que em seu processo evolutivo chega ao século XXI como uma das maiores realizações do ser humano.
A dança é uma forma de expressão intricada. Regida pelos mesmos princípios do canto, o agógico, que tem a ver com velocidade e ritmo musical, e o dinâmico, ligado à intensidade e ao ritmo plástico, cabe-lhe ainda, desenhar no ar esses movimentos, mais ou menos rápidos ou intensos, ocupando, simultaneamente, o tempo e o espaço. É, portanto, uma arte complexa e completa.
Ela, a dança, acompanhou o desenvolvimento do homem desde o Paleolítico. Possivelmente, antes de se comunicar através da fala ou de pintar figuras nas cavernas, o ser humano procurou imitar os saltos dos animais, suas atitudes de ataque e defesa, sua capacidade de voar, executando, assim, os primeiros movimentos de dança. Tentando incorporar essas peculiaridades, o homem deu início ao processo de associar a dança à magia.
Repetidos, os movimentos aperfeiçoaram-se. Por outro lado, ligada aos acontecimentos das tribos, ao sobrenatural, ao telúrico, a dança acabou submetida a regras disciplinares, passou a ser observada esteticamente, a ser organizada e construída de forma lógica e a atender ao impulso criador do xamã. Transformara-se num ritual. A devoção fizera da dança uma Arte.
Podemos analisar a dança de acordo com seus movimentos (em harmonia ou em desarmonia com o corpo, ou no limiar entre ambas as qualidades de movimentos), com seus temas (celebração da colheita, por exemplo.), com seus tipos (imitativa, abstrata ou mista), com suas formas (em conjunto, em pares, ,ou na forma solista), de acordo com os sexos, números, ornamentos, músicas e perceber que não importa como ela se apresente, leva ao êxtase tanto quem a executa quanto quem a assiste, o que sempre foi entendido como algo intimidador.
Essas características da dança podem ser bem observadas naMalamba argentina, aqui interpretada pelo Ballet Moiseyev de Moscou. Observem que se trata de uma dança abstrata, mas que claramente imita os movimentos dos povos cultores de gado. Nota-se também o que foi comum ao ser primitivo: o grande dançarino foi o homem; coube à mulher o papel de se resguardar, executando uma dança mais fechada, menos expandida, mais preservada fisicamente. O pateio e as palmas acentuam o ritmo da melodia e a dança na ponta dos pés revela a tentativa milenar de sair fora do chão.
3 - No Egito o surgimento do drama. Na Grécia, a tragédia e a comédia
O povo egípcio foi o que primeiro conferiu um caráter ritualístico à dança. No ritual em honra do deus Osíris se narra o nascimento, paixão, morte e ressurreição da divindade. Ao contar um enredo que remonta ao nascimento de um mito, revela seu sofrimento e projeta seu amanhã o homem chegara ao drama.
Coube à Grécia complementar o drama dando forma acabada aos dois ramos essenciais do teatro: a tragédia e a comédia, ambas oriundas do culto a Dionísio, uma divindade importada, deus da fertilidade, da liberdade, do prazer e do vinho. À liberdade dos ritos dionisíacos os filósofos gregos opuseram, de certa forma, o culto a Apolo, tipicamente grego, deus da beleza, da harmonia e da luz. Apolo vinha sempre acompanhado de musas. A da dança, e também do canto coral, era Terpsícore. Obcecados pela busca do belo absoluto, coube também aos gregos preconizar que a beleza de um corpo não era apenas o resultado de proporções corretas, mas também de uma postura anatômica particular, princípio até hoje caro ao ballet.
Decadente, a Grécia foi dominada pelos babilônios e, em seguida, pelos romanos, para os quais a dança não desempenhou um papel tão importante. Racionais, conquistadores, monumentais, manifestaram melhor na Arquitetura o seu temperamento artístico, legando-nos um teatro arredondado, em forma de meia-lua, onde se situava o público, ficando o palco na outra metade, origem do prédio teatral como o conhecemos hoje.
A queda do Império Romano, com sua decadência moral, associada à oficialização do cristianismo como religião de Roma, acentuou a condenação à dança, que já datava de longa data, o que se revelou tão persistente quanto inútil. Apesar de proibido, como impedir qualquer povo de dançar?
4 - A dança na Idade Média
A Idade Média trouxe a maior repressão à dança de sua história. Paradoxalmente, as guerras e doenças que marcaram o desmantelamento do mundo feudal foram expressas através de várias danças. A dança macabra, a dança de São Vito, a dança do Flautista de Hamelin, foram algumas delas. Uma dança, a tarantela, que celebrava a vida, não por acaso, acredito, mantêm-se viva até hoje; outra, também eternizada, a “mourisca”, que reproduzia a primitiva dança de armas na forma de uma batalha entre mouros e cristãos, correu mundo chegando a nós como base de várias das nossas manifestações folclóricas dramáticas.
Confiram um fragmento da tarantela na concepção, de 1964, de Georges Balanchine, interpretada por Mikhail Barishnikov e Patricia MacBride. Na lenda, o veneno da aranha tarântula era expelido através do suor provocado pela agitação saltada da dança.
Ironicamente, talvez, considerando a resistência da Igreja à dança, o ballet, uma encenação dançada, nasceu das grandes procissões de Corpus Christie do Teatro Religioso Popular Medieval. A organização de desfiles de arcos triunfais e cortejos, a cavalo ou a pé, deu origem ao gênero literário ao som de cujas canções se cantava e dançava “a canzone a ballo”. Introduzido nos salões, tendo a dança mourisca – já mencionada - como primeira entrada, o grande baile popular das ruas transformou-se num baile menor: o “balletto”.
É, o ballet, de fato, não é uma dança tão estranha ao Brasil.
5 - A Renascença e o ballet
A Renascença nascera marcada pela ascensão de novos donos do poder, de uma burguesia rica que queria se aristocratizar e que usou a dança para se legitimar nessa condição. Para instruir-se, minimamente, sobre como dançar, contrataram-se maestros de dança, figuras fundamentais naquele contexto, aos quais coube fazer a ligação entre as danças populares, dançadas pelo povo, livres, espontâneas, por vezes inconvenientes, e sua domesticação, de forma a atender a costumes amaneirados e aos trajes pesados e imobilizantes usados nos salões.
Esses maestros, em geral, judeus, contando com o concurso da música, dos versos, de grandes cenógrafos, até Da Vinci compôs cenários para ballet, e usando temas mitológicos, engendraram grandes encenações associando-as ao nome balletto.
Ainda estávamos em 1455 quando Antonio Cornazano escreveu o Libro sull’arte del dansare (Livro sobre a arte de dançar), onde o autor fazia uma distinção entre dança popular e dança aristocrática ou arte, explicando que a última era construída a partir de variantes em torno de uma fábula ou enredo, e denominando-a balletto.
O ensino regular pressupõe a teorização e a divisão definitiva entre dança cortesã e dança popular. A dança refletia as tendências da sociedade da época: a música separou as formas vocais das instrumentais, os temas sociais divorciaram-se dos sagrados, o céu e a terra não mais coexistiram. A partir de então, haveria uma arte sagrada e uma arte profana. E, de certa forma, o ballet, em sua origem, representou uma traição ao espírito deflagrador de toda dança, à medida em que, em lugar de adorar deuses passou a adular homens.
Porém, os espetáculos de ballet haviam chegado para permanecer e conquistar o mundo inteiro. Mais de um século depois, com o nome afrancesado para ballet, o balletto chegou à França por intermédio de Catarina de Medicis, quando de seu casamento com o futuro rei Henrique II de França. Como parte de seu dote chegou também Balthasar de Beaujoyeux, coreógrafo do “Ballet Comique de la Reine”, que foi considerado o primeiro ballet da história, encenado em dezembro de 1581, e que deu origem ao que se denominou Ballets de Cour, de Corte. Os ballets eram, então, executados pelos próprios nobres e seguiria, mais ou menos assim, até Luis XIV passar a governar seu reino. Na verdade, pouco a pouco, as dificuldades naturais do desenvolvimento da técnica, começaram a exigir, cada vez mais, a presença de pessoas talentosas e preparadas para executar os movimentos criados pelos coreógrafos.
Por que se considera o Ballet Comique de La Reine como o primeiro, se se tem conhecimento de que ballets eram encenados há tanto tempo, embora tivessem evoluído da concepção original dos salões renascentistas, para o modelo adotado nos salões da nobreza? Por que, se o próprio Beaujoyeux coreografara o “Ballets de Polonais” em 1577?
Provavelmente, porque fora o primeiro a realizar todos os ideais da época, a corresponder a todas as expectativas dos seus protagonistas naquele momento da história.
O aspecto prático, presente no próprio tema, que versava sobre Circe, a feiticeira, de acordo com alguns autores associada à própria Catarina, ou seja, Catarina, como Circe, teria poder sobre a vida da população, em geral, e explícito na preocupação de enviar a descrição do espetáculo, ostensivamente luxuoso, às demais cortes importantes da época, num claro recado que alertava sobre o poder econômico da França, deu início à universalização do ballet.
Essa universalização não impediu, entretanto, que os povos expressassem suas peculiaridades dentro da encenação. A Itália privilegiará cada vez mais a música, revelando o caminho que seguiria para se tornar a pátria da ópera. A dança, dentro do espetáculo italiano, vai se tornar um entreato, um intermezzo sem importância capital. Na Inglaterra, por outro lado, o texto será preponderante sobre todas as outras expressões de arte. Nenhuma pátria produz o maior dramaturgo da história, William Shakespeare, por acaso. Nas “maskes inglesas” – nome conferido ao ballet na Inglaterra – a dança vai se tornando acessória, até que praticamente desaparecerá.
Um parêntese se faz necessário. As mulheres participaram dos primeiros ballets de corte, mas a partir de determinado momento, cuja data exata nunca encontrei em minhas pesquisas, elas foram excluídas dos ballets. Sua participação, durante algum tempo, restringiu-se apenas ao chamado baile final das festas.
6 - O ballet se torna uma profissão
A ascensão de Luís XIV, ele próprio exímio bailarino, seria de crucial importância para a dança cênica. Em 1661, num dos primeiros atos de seu governo, ele criava a Academia Real de Dança, formada por treze músicos e coreógrafos da Confrérie de Saint-Julien des Ménetriers. Todavia, a iniciativa que redundou em sucesso absoluto foi a Academia Real de Música dotada de uma escola de dança, criada em 1669, dirigida por Giovanni Battista Lulli, o Lully, tendo Pierre Beauchamps à frente da direção da escola de dança. Dali surgiu a semente do que hoje conhecemos como Ballet da Ópera de Paris. O ballet tornava-se uma profissão. Até porque ele não desaparecera: antes, criara seu próprio vocabulário, preservado através de tratados e de grandes maestros, refinara-se e se constituíra num espetáculo. Tornara-se “clássico”.
Para tanto, muito contribuiu, não apenas Lully e Luis XIV, mas também o famoso ator e grande dramaturgo Jean-Baptiste Poquelin, o Molière; juntos, Lully e Molière idealizaram o gênero comédie-ballet, que se tornou uma das referências artísticas mais importantes do período. Bons conhecedores das farsas italianas, a elas juntaram canções, coros, danças e elementos da Commedia dell’arte. O brilho das encenações refletiu não só o talento do compositor, mas também do teatrólogo Molière, autor de um texto ímpar na história do teatro e cuja atualidade ainda hoje é indiscutível, sem falar na coreografia de Beauchamps.
A mulher, por tanto tempo banida dos ballets de corte, como mencionado, com Luis XIV acaba por reassumir seu lugar na encenação, embora com alguma resistência inicial. Mademoiselle Lafontaine foi objeto de indignação ao se apresentar, pela primeira vez, em 1681, dançando em público. Dez anos mais tarde, sua discípula, Mademoiselle de Subligny, já não causou nenhuma controvérsia interpretando a mesma obra.
O período acadêmico desenvolveu extraordinariamente a técnica balética, livrando, para sempre, o ballet das mãos do amador. Os princípios obre os quais Pierre Beauchamps construiu a base do academismo e as inovações da técnica de elevação, transformaram a arte do ballet na mais duradoura de todas as formas de dança, através de cujo preparo o bailarino pode executar quase tudo o que um coreógrafo imagine para o seu corpo. Como um alfabeto, com o qual é possível falar inúmeros idiomas, tal o significado da técnica de dança acadêmica ou ballet “clássica”. Um dos ensinamentos consistia na necessidade de manter intactos o vocabulário e os termos técnicos utilizados naquele tempo, de sorte que estes continuaram a ser designados em francês, no mundo todo, até os dias de hoje. Graças a isso, a tradição pode ser mantida oralmente pelos bailarinos, o que foi de importância fundamental para a preservação do sistema, já que só no século XX criou-se um método de notação coreográfica que funcionasse de fato.
Surgiram os primeiros grandes bailarinos dentre os quais Louis Dupré e Jean ou Claude Ballon, e seus herdeiros artísticos, Maria Camargo, Marie Sallé, depois Auguste Vestris, entre muitos outros.
Veremos a seguir duas pequenas demonstrações de dança de época. Na primeira temos a reconstituição de uma variação coreografada para Luis XIV, e na segunda uma variação de La Camargo reconstituída por Mary Skeaping.
7 - O Ballet de Ação
Mas, refletindo uma situação que se tornou cíclica em relação ao ballet, discussão que se estende a nossos dias, a excessiva preocupação com a técnica gerou protestos dos que defendiam mais expressividade nos bailarinos. Destacou-se, nessa verdadeira batalha, Jean-Georges Noverre, em função dos pontos que assinalou nas suas “Cartas sobre a dança e sobre o ballet”, de 1760. Sua preocupação com o movimento expressivo levou-o a conceber o chamado “Ballet de Ação”, que ainda hoje se percebe na concepção coreográfica, sobretudo européia, onde a narrativa continua muito presente. O “Ballet de Ação” deveria mesclar dança, ou a arte de executar bem os passos, e pantomima, a arte de interpretar as emoções humanas através de gestos.
Noverre, ao reconhecer na técnica um pré-requisito e um meio indispensável para se dançar, mas não um fim em si mesma, ao defender a autonomia do ballet como arte cênica, ao bradar por sua coerência dentro do espetáculo em que funcionasse como intermezzo, ao exigir criações que apresentassem exposição, desenvolvimento e solução, ao recomendar, em nome de uma execução mais perfeita e expressiva, que se jogassem fora perucas, máscaras horrendas, ridículas anquinhas e trajes incômodos, livrou, definitivamente, o ballet da pecha de arte frívola ou mero entretenimento social.
As idéias de Noverre foram realizadas, sobretudo, por seus discípulos, que difundiram seus princípios pelo mundo todo e que, mais do que sempre, fez estar presente nos coreógrafos a noção de que o ballet precisava ser sempre uma arte expressiva do seu tempo. A melhor comprovação disso é o ballet pré-romântico “La Fille mal Gardée”, de Jean Dauberval, estreado em 1º de julho de 1789, dias antes da Revolução Francesa, portanto, obra encenada até nossos dias, em diferentes versões. Um brinde, no palco, ao povo, antecipava, para o público, o processo revolucionário que estava em marcha. Em “La Fille”, a inspiração é esse povo, ali visto como inteligente e com vontade própria. É também a idealização da vida no campo, em contraponto às péssimas condições de vida das cidades recém-industrializadas.
Veremos um fragmento dessa obra-prima na versão de 1960 de Frederick Ashton, pelo Royal Ballet de Londres, remontada no mundo inteiro, inclusive no Ballet Bolshoi de Moscou, pelo brasileiro Emílio Martins.
8 - O período romântico
O período romântico, em que o ocidente conviveu com uma releitura do medievalismo, com a espiritualidade, a magia, a noção de nacionalismo, assim como com os elementos coloridos e exóticos de diferentes povos e nações, foi revelado em sua plenitude através do ballet, ainda que o primeiro ballet considerado romântico, “La Sylphide”, de Filippo Taglioni, seja datado de 1832, e o movimento romântico tenha sido deflagrado em fins do século anterior.
Ocorre que, além de o movimento romântico ter chegado à França bem depois de seu início, o ballet é um espetáculo em que todas as artes estão envolvidas: da música ao estado de espírito dos espectadores, do tema aos trajes que libertaram o corpo para a dança, dos efeitos cênicos que transmitiam a sensação de fantasia, de espiritualidade, à técnica de ponta das bailarinas, da cenografia aos figurinos, tudo precisava estar desenvolvido e assimilado.
Ao se observar que o irracional eclipsara totalmente a lógica e a sensação do esforço requerido pelo virtuosismo, percebe-se que os ideais de Noverre haviam se concretizado. Os chamados tutus, que conferiam liberdade ao corpo e até o revelavam sutilmente, eram parte desse ideal realizado.
No ballet, o personagem James abandona o conforto da vida real, uma boa casa, amigos e um bela noiva, para seguir sua fantasia, a Sylphide. A tentativa de materializá-la, para o que é objeto da vingança de Madge, a feiticeira que ele expulsara de casa, mata a fantasia e James caminha para seu próprio fim. Madge representa mais um elemento típico do romantismo presente no ballet.
Veremos a seguir um fragmento de “La Sylphide na reconstituição de Pierre Lacotte de 1972.
Nove anos depois de “La Sylphide”, com “Giselle”, obra-mestra absoluta concebida por Théofile Gautier e Henry Vernoy de Saint-George, coreografada por Jean Coralli e Jules Perrot, o romantismo atingia a perfeição. Apaixonada por Albrecht, um falso camponês, Giselle, ao perceber-se traída, morre num acesso de loucura e transforma-se numa Willi. As Willis são seres mortos às vésperas do casamento, e que se vingam condenando à morte todos os homens que cruzem com elas no cemitério entre meia-noite e o alvorecer. Giselle, uma willi sendo introduzida num rito de iniciação, ainda apaixonada por Albrecht, salva-o e desaparece seguindo suas companheiras.
Eis aqui fragmentos do 1º e do 2º atos de Giselle.
A título de curiosidade, gostaria de comentar que “La Sylphide” e “Giselle” foram assistidos no Rio de Janeiro, pela primeira vez, em 1848 e 1849, respectivamente. Tal foi o alcance do movimento romântico no mundo.
Com o apogeu da figura feminina, prevalecendo em todo o período romântico, a importância do bailarino ficou reduzida a de um mero levantador de bailarinas. A dança cênica masculina, na França, entrou em decadência, originando, quem sabe, um preconceito em relação a esta profissão para homens ainda não totalmente superada. Preconceito absurdo. Eu sou casada com bailarino há 43 anos e acabamos de ser premiados por Deus com um casal de netos, filhos de nosso filho. Mas o fato é que, em 1870, quando se montou o último ballet de sucesso na Ópera de Paris, o principal papel masculino foi interpretado por uma bailarina travestida.
Por esse tempo, dançava-se ballet em todo o mundo ocidental, inclusive na Rússia, que despontava para assumir um lugar que nunca mais perderia no que tange a dança acadêmica. Desde finais do século XVIII todos os grandes nomes do ballet passaram pela Rússia; ao fim do XIX, eram eles os maiores bailarinos do mundo, prescindindo de importar estrelas de renome. A eles caberia, ainda, a recuperação da figura do homem para a história do ballet.
9 - O ballet se desloca para a Rússia
O grande impulso do ballet russo veio com o sueco Charles Didelot, encantado com um povo que considerou “naturalmente pré-disposto para a dança.” Didelot foi sucedido pelos franceses Arthur de Saint-Léon, Jules Perrot e, finalmente, por Marius Petipa.
Ao assumir sozinho, em 1869, o posto de Diretor de Ballet do Teatro Mariinski de São Petersburgo, Petipa introduziu um novo período clássico-acadêmico, além de dotar o povo russo de sua expressão definitiva de dança.
A obra de Petipa só é comparável a dos grandes mestres das demais manifestações artísticas. Seu encontro com os russos Piotr Ilich Tchaikovski e Lev Ivanov redundariam em três obras-primas da criação coreográfica: “A Bela Adormecida”, de 1890, ballet que criou sozinho, “O Quebra-Nozes”, de 1892, de Lev Ivanov, do qual participou da adaptação do libretto para ballet, além de supervisionar a produção, e “O Lago dos Cisnes”, o mais romântico dos ballets clássicos, na versão de 1895, com Ivanov.
Petipa foi muito mais do que um mestre da utilização do conjunto, um exímio enriquecedor do vocabulário acadêmico, um genial renovador visual dos espetáculos de ballet, o homem que conseguiu integrar a pantomima narrativa à dança sem interrompê-la. Ele conseguiu, em 1877, até sugerir que o espaço do palco era ilimitado ao repetir, em “La Bayadère”, um mesmo movimento 37 vezes provocando no público uma espécie de “estado hipnótico” e a sensação de que as bailarinas que entravam em cena o faziam infinitamente.
Pelo Royal Ballet de Londres, eis o trecho com os trinta e sete arabesques que sugerem que o palco é infinito. As bailarinas representam as sombras de Nikya, bailadeira do Templo, traída por Sólor, guerreiro prometido à filha do Grão Vizir e objeto da paixão do Sumo Sacerdote do Templo. Sólor, com remorso e sob efeito de ópio vê a imagem de sua amada se multiplicar indefinidamente.
Stravinski afirmou sobre ballet: “A sua verdadeira essência, na austeridade de suas formas, constituiu-se no triunfo da ordem sobre o arbítrio.”
Indo mais longe, declarou sobre ballet clássico, ao reger “A Bela Adormecida”, em 1921, em homenagem a Petipa: “Para mim é um grande prazer tomar parte nessa criação; não somente pelo amor a Tchaikovski, mas também, pela minha profunda admiração pelo ballet clássico, o qual, em sua essência, pela beleza de sua organização e aristocracia austera de suas formas corresponde, de maneira tão próxima, à minha concepção de arte. De fato, na dança clássica eu vejo o triunfo da concepção estudada sobre a imprecisão, da regra sobre o arbitrário, da ordem sobre o casual. Estou, assim, face a face com o eterno conflito entre os princípios apolíneos e dionisíacos. O último assume o êxtase como meta final - ou seja, a perda de mim mesmo - enquanto que a arte demanda, acima de tudo, a total consciência do artista. Aí não há dúvida sobre minha escolha entre os dois. E, se eu aprecio tanto o valor do ballet clássico, não é simplesmente uma questão de gosto da minha parte, mas, porque eu vejo nele, exatamente, a mais perfeita expressão dos princípios de Apolo”.
Veremos a seguir os pas-de-deux de “O Lago dos Cisnes”, ballet criado em 1895: o de Odette, o cisne branco, de Ivanov, e o de Odyle, o cisne negro, de Petipa, na interpretação de Cecília Kerche, primeira-bailarina do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com Vitor Luís, hoje primeiro-bailarino do San Francisco Ballet, no papel de Siegfried. Odette/Odyle, o duplo papel feminino, representa uma das maiores provas de interpretação, técnica e estilo para uma bailarina clássica. Sigfried precisa escolher sua futura esposa. Entediado, sai para caçar cisnes quando vê um deles se transformar numa bela mulher. Os cisnes eram princesas encantadas por Rothbart, o feiticeiro. Odette e Sigfried se apaixonam e se juram amor eterno. Mas o Rothbart, que a tudo assistia, atribui a sua filha Odyle a aparência de Odette e a leva ao baile em que Siegfried apresentará à mãe e à corte a sua escolhida. E ele se deixa enganar. A traição ao juramento provoca, originalmente, a morte dos personagens principais, inclusive a de Rothbart, o que significa a libertação dos demais cisnes, companheiras de Odette.
10 - O século XX
Mas Petipa envelhecera. O século que entrava reivindicava novas soluções, idéias mais modernas. Um jovem coreógrafo, Mikhail Fokine, não mais francês, mas russo, estava atento àquele momento da história. Em 1914, ao publicar os cinco pontos sobre os quais fundamentara sua criação, ele provocou e registrou a nova mudança na concepção cênica do ballet clássico, preservando, contudo, intacta, sua técnica de formação.
Um nome, Sergei Diaghilev, homem culto, inteligente, criativo, sedutor e dotado de poucos escrúpulos (segundo suas próprias palavras), se destacou na sensível tarefa de revelar Fokine e os criadores que o sucederam ou atuaram ao seu lado – Vaslav Nijinski, Leonid Massine, Bronislava Nijinska e Georges Balanchine -, ao mundo, e de exportar a arte que estava sendo produzida na Rússia: uma nova arte sim, ousada sim, brilhante sim, e que dialogaria com os movimentos que surgiam na Europa e nos Estados Unidos.
Veremos, a seguir, o mais belo e conhecido solo de ballet em todos os tempos: “A Morte do Cisne”, de 1905, aqui, na interpretação de Uliana Lopatkina. Um ano antes, talvez, não se cogitaria de colocar uma bailarina em cena, dançando, em um solo de 4 minutos, a metáfora da morte, baseado no passo mais básico do aprendizado da técnica de pontas do ballet clássico: o pas-de-bourré.
Diaghilev trouxe com ele a modernidade, o vanguardismo, o ineditismo, o atrevimento. Absolutamente nenhum movimento artístico, de dança ou não, ficou distante dele.
Nesse ano de 2010, em que a companhia criada por Diaghilev completou 101 anos, pode-se colocar uma questão: Como seria a dança cênica sem sua presença?
Pensando no que propuseram os artistas dos “Ballets Russes de Diaghilev” é possível, em pleno século XXI, rotular a obra de arteno sentido de associá-la ao momento em que é criada como se isso justificasse sua qualidade?
Ainda. Existem criações que nascem velhas; outras permanecem de uma atualidade, no mínimo, surpreendente. Tem o artista, o crítico, o pensador que escreve agora, o direito de negar a todas as gerações o conhecimento das obras que foram criadas e que resistiram ao tempo, tornaram-se atemporais, e que eles próprios, críticos, conhecem, que fazem parte, portanto, de seu legado pessoal, de sua própria cultura artística?
“O século XX nasceu marcado pelas idéias de vários artistas instigantes: Isadora Duncan apregoando sua dança tão livre e impressionista quanto seu estilo de vida; Rudolf Laban, Mary Wigman e Kurt Jooss, na Europa, deflagrando o expressionismo na dança cênica; Ruth Saint-Denis e Ted Shawn, nos Estados Unidos, fundadores da escola Denishawn, de onde vieram Martha Graham e Doris Humphrey, vigas mestras do que se chamou modern-dance. Em comum a todos, uns mais outros menos, a rejeição inicial ao ballet clássico. Wigman, Graham, Humphrey usaram o corpo em movimento para traduzir profundos conflitos humanos. Para isso revelaram o esforço despendido para executá-los e lançaram mão de temas que revelassem essas angústias.”
Isso, senhores, é o que se lê num livro formal de história da dança.
Mas não se dorme antigo e se acorda moderno. Desconhece a história quem pensa que o ballet ficou indiferente a essas sinalizações. Os grandes criadores diaghilevianos trataram de inserir os Ballets Russes e suas criações dentro da contemporaneidade, até de maneira brutal. “Sagração da Primavera”, de Stravinski, em parceria com o legendário Nijinski, pode ser considerada a verdadeira ruptura com o ballet. Mas quem rompe, rompe com alguma coisa pré-existente. O pré-existente de Nijinski era sua poderosa formação em dança acadêmica.
A par da percepção de que o ballet precisava se renovar, que estava latente nos gênios russos, Isadora exerceu uma declarada influência sobre Diaghilev, suas idéias e seus artistas.
Por outro lado, existiu uma clara ponte ligando a modern-dance e o expressionismo, aos Ballets Russes, por meio do sistema Eurritmia de Émile-Jaques Dalcroze, adotado por sua discípula Marie Rambert ao assistir Nijinski na montagem de Sagração. Dalcroze era herdeiro de François Delsarte, cuja técnica foi adotada pela Denishawn nos Estados Unidos, e herança de Wigman. Como é possível constatar, direta ou indiretamente, toda a arte que marcou as primeiras décadas do século XX pode ser estudada a partir dos Ballets Russes de Diaghilev.
Fokine, como já dito, o primeiro coreógrafo da saga de Diaghilev, já delineara a ruptura com os cânones do ballet acadêmico em “ Petroushka”, contando com a genial interpretação de Nikinski, que o sucederia com sua primeira criação, “L’aprés-midi d’un faune”. L’aprés-midi é uma criação praticamente inclassificável. Para uns é o prenúncio do neoclassicismo na dança, para outros é uma obra tão impressionista quanto a música de Debussy; para outros ainda, é uma peça minimalista. E, será que classificá-lo é, de fato, importante?
Veremos aqui Barishnikov interpretando a variação de “Petroushka” , de 1911, e Nureyev em um trecho de “L’aprés-midi d’un faune”, de 1912. O ballet, de fato, mudara. A história de Petroushka é a história de três fantoches com alma. Petroushka é o Pierrot russo, delicado, sufocado pela prisão em que é mantido, e apaixonado pela Bailarina, que, por sua vez, é atraída pela sensualidade obtusa do Mouro. Morto pelo Mouro depois de uma briga que começa na tenda em que vivem, aparece a seu dono, como um espectro, no telhado da tenda. A alma daquele boneco permaneceria para sempre atormentando a consciência do mago. Afinal, quem é real? Petroushka ou o mago charlatão?
O Fauno de Nijinski é um voyeur. Impossibilitado de conseguir pegar uma das ninfas, satisfaz seus instintos animais com o chale perdido por uma delas.
Nijinski foi sucedido por Massine, criador de “Parade”, ballet que tinha roteiro de Jean Cocteau, cenários e figurinos de Pablo Picasso e música de Eric Satie. Ignorado até por professores de história da dança, excluído do repertório do Municipal do Rio, onde deixou sete obras, Massine foi revisto e vem sendo considerado o Michelangelo da dança pela arquitetura das grandes massas que construiu em seus ballets sinfônicos, reconhecido através das remontagens, pelo mundo, de Tatiana Leskova.
Vejamos pequenos fragmentos de “Parade”, de 1917, e de “Les Présages”, de Massine, de 1933, remontado para o Ballet Nacional da Holanda por Leskova, minha professora, a quem até hoje chamo por d. Tania.
Nijinska, irmã de Nijinski, com o moderníssimo “Les Noces”, de 1922, introduziu na dançapela primeira vez, antes da modern-dance de Martha Grahm, portanto, a perspectiva feminina. Aquelas festas de núpcias de uma Rússia atada ao sagrado apresentavam o que verdadeiramente sentiam as mulheres ao sair da casa dos pais para seguir um estranho a quem ainda não haviam aprendido a amar. Vivo no repertório do mundo todo, inclusive na São Paulo Companhia de Dança e já remontado para o Municipal do Rio, a obra, também com música de Stravinski, revela toda a genialidade de seus autores.
Finalmente, Diaghilev apresentou ao mundo Georges Balanchine.
Com Balanchine chega-se ao mais genial construtor da moderna dança acadêmica, um homem adiante de seu tempo, hoje equiparado a Picasso, Stravinsky e James Joyce.
11 - A modernidade
Sem esses artistas paradigmáticos para o ocidente como seria a dança contemporânea? O que é atual é moderno?
Moderna é uma palavra ambígua, imprecisa. A palavra “moderno”, no ballet, é mencionada pela primeira vez no tratado do padre Menestrier Ballets anciens et modernes, publicado em 1682; Noverre é mencionado por vários autores como o Pai da dança moderna pelas significativas mudanças que propôs em suas Cartas; outros consideram que os pontos que Fokine publicou fazem dele o verdadeiro pai do ballet moderno. Em dois desses pontos, relativos ao ballet clássico, elaborados pelo coreógrafo, encontra-se a palavra moderno, a saber: “Gestos e mímicas só têm sentido no ballet moderno, quando a serviço da ação dramática. O corpo do bailarino deve ter expressividade da cabeça aos pés, sem pontos considerados mortos. No ballet moderno, os gestos de dança clássica somente se justificam quando o estilo o requer.”
Há os que falam de Isadora. Outros ainda de Graham. E vai por aí.
Mas o fato é que o ballet seguiria, modernizando-se permanentemente, mesmo mantendo o rótulo – às vezes, o estigma - de dança acadêmica, e seguindo sua classificação própria em relação aos movimentos artísticos adotados pelas demais artes.
Então? Como ficamos? Fala-se, muito, atualmente, em Ballet Contemporâneo e Dança Contemporânea. É uma forma legítima de os bailarinos clássicos defenderem a contemporaneidade do ballet. Mas ballet não é dança? Afinal, o que é a dança contemporânea?
Peço licença, neste ponto da palestra, para uma explicação longa, na qual exponho o assunto dança contemporânea a partir de seus executantes.
“A dança contemporânea rompe com as molduras clássicas. Não tem técnicas específicas nem um "corpo ideal". Inova nas temáticas e na relação com os espaços e outras artes.
A dança contemporânea surge nos anos 60 nos EUA. Nasce no seguimento da dança moderna, na medida em que pretende também romper com os moldes rígidos da dança clássica.
A dança contemporânea é também profícua em relações com outras artes, desde o vídeo, às artes plásticas, à música ou à fotografia. A vertente da vídeodança é um dos géneros híbridos que surgiu nos últimos anos.
"A dança moderna, em relação à clássica, foi uma forma de libertação do bailarino, de expressar mais os sentimentos das pessoas e não apenas histórias. A dança contemporânea surge também nesse contexto", explica Catarina Marques, antiga bailarina e aluna do Ginasiano Escola de Dança, de Gaia, em Portugal.
Apesar do forte paralelismo, a dança contemporânea diferencia-se da moderna por não obedecer a técnicas. A dança moderna tem diferentes técnicas ligadas a vários coreógrafos, como Martha Graham, Doris Humphrey ou José Limon. "A contemporânea não tem essas técnicas, é a liberdade de expressão do bailarino", diz Marques. Não há mecanismos definidos, há antes processos e formas de criação. Parte-se de métodos "desenvolvidos por bailarinos modernos, como improvisação, contacto-improvisação", para uma construção personalizada da criação.
O bailarino contemporâneo tem um papel mais autónomo e interventivo na coreografia. "Antes, o coreógrafo dava um movimento ao bailarino e ele decorava-o e trabalhava-o. Agora dão temas, estímulos - que podem ser objetos, músicas - para o bailarino criar". O coreógrafo produz a partir do discurso do intérprete.
Apesar da ruptura com os artifícios do ballet, a linguagem própria da dança contemporânea não deixa de integrar referências clássicas. "Um bom bailarino contemporâneo tem de ter por base a dança clássica, a técnica, para depois poder se libertar", salienta Catarina Marques. Uma coreografia contemporânea não tem a harmonia estética de uma clássica. Mas os movimentos "têm primeiro de ser limpos para depois poderem ser sujos intencionalmente".
Como a dança contemporânea não se define em técnicas ou movimentos específicos, emerge uma nova noção de corporalidade. Busca um sentido mais experimental, menos estratificado.
"Na dança contemporânea não existe um corpo ideal, como na dança clássica. É um corpo multicultural, que tem várias referências", explica Joclécio Azevedo, coreógrafo, bailarino e diretor do Núcleo de Experimentação Coreográfica do Porto (NEC).
Este corpo multicultural é um espelho do contemporâneo, do contexto globalizado em que a dança contemporânea se move. "Relaciona vários temas da sociedade de hoje", afirma Catarina Marques. "Muitos bailarinos falam do racismo - Bill T. Jones é o exemplo maior - da guerra, etc., é fruto do seu tempo".
A dança contemporânea explora uma paleta de procedimentos corporais distintos e transversais. "É um corpo que tem formações diversas. Eu, enquanto bailarino, tenho formação de teatro", diz Joclécio. O bailarino tem autonomia para traçar e desenvolver o seu próprio vocabulário, pois "não existe um corpo, existem corpos". Na dança contemporânea, a ideia de corpo é "colocada em questão": "o corpo não está só dependente da mobilidade, da elasticidade; mas também de características de ordem psicológica, antropológica, cultural".
O corpo não se apresenta como o único veículo de comunicação - todo o contexto temático que arquitecta a criação encerra uma sintaxe. O corpo é quem instiga o discurso simbólico, "é o catalisador da emoção, do pensamento, da atitude política, da sexualidade", esclarece Joclécio. E é esse conjunto de elementos que "acaba por tocar em diferentes aspectos da nossa vida contemporânea", acrescenta o coreógrafo.
Um dos elementos diferenciadores da dança contemporânea é o diálogo que estabelece com os espaços. A coreografia pode saltar de um palco para lugares menos convencionais. Aí faz-se uma coreografia sobre o espaço. Temos de ver o que ele sugere, se o movimento é mais claustrofóbico, mais amplo", diz.
"Mas também pode ser simplesmente pegar numa coreografia e pô-la num espaço, só que ele vai condicioná-la. Há uma necessidade na dança contemporânea de o bailarino se adaptar ao espaço", sublinha Marques.”
Esta definição não é minha, eu a li, até entendi – nem sempre eu entendo - , e a adotei para a palestra, embora veja com certa perplexidade determinadas afirmações que serão assinaladas mais adiante.
Em seu emocionante livro “Dentro da Dança”, o moderno Murray Louis afirma: “- Em 1950, Balanchine era a definição de ballet clássico e Martha Graham de dança moderna. Em 1970, é chegada a hora de redefinir as definições”.
Compartilho da mesma idéia. Se o século XX não respondeu com o cientificismo, como se esperava, às questões eternas do homem, se entramos no XXI com as mesmas perplexidades, todos os grandes criadores que conseguiram captar esse estado de espírito foram e continuam sendo extremamente modernos ou contemporâneos. Ou não foram grandes. Só isso!
Misturando, vários momentos da história, tudo e todos, brasileiros e estrangeiros, como classificar coreógrafos como Ana Vitória, Anthony Tudor, Boris Eifman, Deborah Colker, Édward Lock, Henrique Rodovalho, Jerome Robbins, José Limon, Lia Rodrigues, Luis Arrieta, Magui Marin, Mark Morris, Mathew Bourne, Maurício de Oliveira, Paulo Caldas, Roland Petit, Twyla Tharp, Ulisses Dove, etc., etc., etc.? São neoclássicos, contemporâneos, expressionistas, modernos, pós-modernos? Serão eternos? E onde inserimos o avassalador Butoh japonês, expressão paradoxalmente delicada e trágica da brutalidade dos que se consideram civilizados? E a street dance, com sua manifestação vital, catártica? “Lecuona”, de Rodrigo Pederneiras, com seus elementos de dança de salão, é muito contemporâneo. Porque ele se permite criar sem barreiras.
Fui uma bailarina clássica, mas a modernidade se apresenta para mim, como a ampla possibilidade de inter-relação e interdependência de todos os estilos entre si e entre todas as artes, não apenas na dança contemporânea, mas na dança cênica, em geral. Afinal, Diaghilev trabalhava com Picasso, Stravinski, Jean Cocteau, por exemplo, e Martha Graham com Isamu Noguchi. A idéia de profunda integração entre as artes não pode ser considerada um privilégio da dança contemporânea. Hoje, pode-se afirmar, que o preconceito que permeou a atitude dos pioneiros, dos primeiros construtores das diversas danças do século que passou, foi superado pela própria genialidade de suas figuras iluminadas, todos artistas que apreenderam algo de eterno no presente. A resistência ao ballet permaneceu apenas com os que se arvoraram em seus arautos, arautos superados pelos próprios criadores, que se distanciaram do cerceamento imposto por normas, conceitos e pré-conceitos, amarras, limites e rótulos.
Em nome da contemporaneidade, já ouvi críticas demolidoras sobre verdadeiros ícones da história do ballet. Do Brasil e do exterior. Um dos mais criticados foi Maurice Béjart. Hoje, eu mesma me pergunto se alguém lembra dos nomes dos críticos e analistas e penso que, certamente, Béjart, sua obra magnífica e sua contribuição para a dança estão, definitivamente, na história. Porque Béjart foi um fenômeno real. Com seu desaparecimento, infelizmente, desaparece grande parte do impacto de seu trabalho, sua capacidade de comunicação com todos os públicos. Bejart foi um tradutor do mundo, um homem que realizou a dança em sua plenitude e que estava acima de críticas e análises de primeira hora.
“Esta é a arte do século XX”, costumava dizer, ao afirmar que se tivesse um destino era o de levar o público para ver dança e dançar. E ele conseguiu, deixando a lembrança de momentos inesquecíveis para milhões de espectadores.
Tentando esclarecer melhor o pensamento do criador contemporêno, pincei declarações de dois artistas – Merce Cunningham e Pina Bausch - para ilustrar sua própria obra, embora, em geral, eles prescindam de tanta falação.
Cunningham, ele próprio um excelente bailarino, na velhice, mesmo usando cadeira de rodas vez por outra, parecia não sentir a idade e deslumbrava-se com as possibilidades oferecidas pela tecnologia. Entretanto, como um dos mais legítimos representantes da chamada pós-modernidadeafirmou: " Não há qualquer pensamento envolvendo minha coreografia. Eu não trabalho através de imagens ou idéias; eu trabalho através de corpos…Se os dançarinos realmente dançam, o que não é, absolutamente, a mesma coisa que formular teorias sobre dançar ou desejar dançar ou tentar dançar, então tudo vai estar lá. "
Cunningham trabalhou até sua morte, esse ano, levando os corpos dos seus bailarinos para a tela do computador, de onde retornava, com novas propostas, ao mesmos corpos. Sua técnica absorveu princípios do ballet, de Graham, e suas descobertas pessoais. Absorveu o que lhe interessava porque foi permanentemente jovem, aberto para pesquisar, para se estimular, para se integrar. Barishnikov, um bailarino que seria moderno em qualquer tempo, com quem trabalhou por alguns anos, declarou que se sentiu nas aulas de Cunningham como nas aulas de ballet, apenas com novas sutilezas.
Observem fragmentos de Duets, de Cunningham, de 1980, na interpretação de bailarinos clássicos.
Pina Baush, que também nos deixou este ano, é considerada a mais importante representante do neo-expressionismo alemão desde os anos setenta. A par da experiência nos Estados Unidos, quando estudou com Antony Tudor na Juillard School, foi herdeira do grande legado de Kurt Jooss, um coreógrafo, talvez o maior de seu tempo, expressionista humanista, em cuja escola, a Folkswangshule de Essen, estudou. Em 1973 assumiu a direção do Tanztheater de Wuppertal impondo um estilo hoje conhecido como " Teatro Total". Politicamente engajada, feminista, Baush, mais uma criadora de formação inclusiva, ela própria uma extraordinária e emocionante intérprete, redimensionou o conceito de dança moderna, de ballet e de ópera- ballet, sem se deixar rotular. Aos que sempre reagiram ao ballet ela parece, como Graham, só responder com a admiração por Tudor, coreógrafo de uma obra singular, de alto valor artístico, e de uma linguagem que não deixou seguidores, de quem foi aluna e intérprete. A abordagem psicológica que Tudor deu a seus ballets marcou muito a carreira de Pina Bausch.
Bausch perguntou certa vez : "Quando é que começamos a falar de dança? Isto tem a ver com a consciência do corpo e de como damos forma a certas coisas. Mas não é bisonho que se fale particularmente deste tipo de forma estetica que é a dança? Pois, por mais diversa que ela se apresente, será sempre dança."
E, no caso de Pina, assim como no de Cunningham, eu acrescento: dança de corpos extremamente expressivos e preparados para seu ofício de dançar.
Mencionei essas duas legendas da dança contemporânea que não rejeitaram, antes, desconstruíram a técnica de ballet clássico porque a conheciam e podiam, dessa forma, desconstruí-la, mas recuso-me a considerá-lo, ao ballet, como apenas uma técnica bem construída, um meio para atingir outros fins que não ele mesmo. O moto-contínuo característico de Balanchine, retrato do nosso tempo, a visão cinematográfica, a essencialidade e a teatralidade estiveram presentes em todos os grandes coreógrafos de base acadêmica ao longo do século XX, entrando pelo XXI.
Mr. B. como Balanchine é conhecido no mundo da dança, tornou-se tão mais universal quanto o tempo passa. Ele é uma provocação para todos os criadores contemporâneos, que não escondem a influência sofrida e a importância, cada vez maior, de sua obra.
Outro dia, tive o privilégio de assistir a São Paulo Companhia de Dança interpretando Balanchine. Não era a primeira vez, nem o único ballet e, como sempre, me admirei com a construção fabulosa de um homem profético na sua criação.
“Agon”, aqui, com a palavra usada no sentido de desafios, de Balanchine, foi criado em 1956. Veremos um fragmento na interpretação de Darcey Bussell e Nicholas Hübbe. Observem a atualidade dessa criação, absolutamente abstrata e neoclássica em sua forma mais pura.
Balanchine é sinônimo de novos mundos, de atitude saudável, energia, velocidade, de Nova Iorque, São Paulo, de auto-suficiência e senso de humor, sendo, entretanto, venerado na velha Europa.
Através da obra de Balanchine pode-se entender, em linhas gerais, o neoclassicismo na dança, considerando determinados itens que prevalecem, embora não sejam empregados todos ao mesmo tempo na mesma obra, e observando-se a tendência, em várias criações consideradas neoclássicas, para concepções que fogem daquele estilo.
São elas: criação baseada no virtuosismo da técnica acadêmica; geometria no tratamento do conjunto, reportando-se às concepções de Beaujoyeux e às renascentistas, com seus ideais clássicos e gregos; temas e concepção estética, inúmeras vezes, de inspiração renascentista, compreendendo uma dose de atleticismo da alma e do corpo e uma certa impessoalidade na apresentação; revalorização na dança do conjunto e da qualidade do corpo de baile, com a conseqüente negação do star-system; produções espartanas e despojadas e, em caso contrário, estas parecem não ser indispensáveis à obra; foco, acentuação e intenção sempre na plasticidade do corpo humano; padrão musical básico de excelência; utilização da abstração, predominando sobre os ballets com enredo.
12 - O ballet na contemporaneidade européia
Mas a Europa, ela mesma, também é muito moderna.
O francês Roland Petit foi um dos primeiros coreógrafos a colocar no palco bailarinos que fumam, bebem, falam ao telefone. Ousado, criou duos para homens, desnudou bailarinas e bailarinos em nome da obra que queria criar, e, como Balanchine, propôs trajes e penteados. Na sua obra há lugar para a filosofia existencialista, para a sensualidade explícita, para a transposição de obras literárias com a complexidade de “Em busca do tempo perdido”, de Proust. Vivo, com mais de 80 anos, está tendo toda a sua obra montada ou remontada para a Ópera de Paris.
Recentemente, tivemos o privilégio de assistir “Carmen”, de 1949, uma obra-prima, plena de simbolismos, distante da ópera, da qual só usou a música e o pretexto do tema, para falar de liberdade e sentimento de posse, remontada para o Theatro Municipal do Rio.
Peguemos o escocês Kenneth MacMillan.
Dentre os temas principais que compuseram a conferência sobre seu centenário de nascimento encontravam-se: Classicismo e Expressionismo no trabalho de MacMillan; a utilização desses movimentos; a estrutura coreográfica de sua obra; o significado do seu trabalho e seu legado.
Ao contrário de Balanchine, que achava que a dança só expressava a ela mesma, MacMillan defendia a concepção de que através da dança se pode exprimir profundos conflitos existenciais. Não mais amores sobrenaturais, mas paixões humanas, desajustes, anti-heróis, gente, enfim, de carne e osso. Como pensava Roland Petit, cada qual com sua linguagem peculiar e riquíssima.
Pode-se, perfeitamente, perceber a dimensão da obra desse criador que introduziu mudanças significativas na estrutura da grande narrativa contemporânea baseada na tradição européia do Ballet de Ação de Noverre.
Como classificar MacMillan? Por vezes ele é profundamente romântico, outras se apresenta expressionista, ou moderno, ou realista, ou refinadamente bem-humorado, como todo inglês. E sensual. A sensualidade explícita no ballet é muito moderna.
Outro ponto de modernidade: se dos grandes ballets do século XIX era possível extrair fragmentos neles colocados apenas para revelar o virtuosismo do bailarino, em MacMillan ou Cranko, por exemplo, essa possibilidade fica quase que totalmente descartada. São obras tão ligadas, tão viscerais, que qualquer duo fica sem sentido fora do contexto a que serve dentro da peça dramática. Se dependesse de MacMillan acabavam-se os festivais e concursos tão populares no mundo todo porque, simplesmente, não haveria o que dançar. Ou mesmo em qualquer coreógrafo de Diaghilev. Nunca vi, em festivais, qualquer das criações dos Ballets Russes de Diaghilev dançada. Elas não se prestam a isso.
Observem dois fragmentos de Winter Dreams, de MacMillan, criado em 1991, baseado na peça de Anton Tchecov “As três irmãs”. Creio que, apesar do pequeno trecho, a dança dispensa as palavras, ao menos para quem conhece a peça. Aqui, Kuliguin vê, impotente, com dor reprimida, sua mulher Masha apaixonada por Verchinin. E depois Masha se despede de Verchinin sabendo que com a partida dele vão-se todas as suas esperanças de uma outra vida, menos acanhada, menos limitada.
O sul-africano John Cranko , também um produto da concepção de dança da Inglaterra, contemporâneo e companheiro de MacMillan, provavelmente, teria protestado ao ouvir tantas explicações sobre dança. Ele não queria que sua audiência tivesse que procurar "qualquer coisa". Sua convicção era de que tudo o que estava tentando dizer deveria estar visível no próprio movimento.
Cranko, dizem, homem pleno de energia e intensidade, foi acima de tudo um comunicador. Desenhava seus movimentos envolvendo-os com beleza estética, é verdade, mas essa preocupação foi secundária em sua obra. Críticos se arvoraram a dizer que sua obra era um tanto óbvia, para depois lamentar que u criador tão inspirado e talentoso tivesse morrido tão jovem. Quem são mesmo os tais críticos?
Se falamos de teatro total referindo-nos a Pina Bausch, há que se inserir também Cranko, no conceito de ballet-teatro. Ele só admitia dançarinos/atores dos quais exigia 100% de dedicação e muito talento cênico . A essência de seu trabalho se traduziu nas criações dramáticas e narrativas, embora tivesse momentos sublimes de abstração. Por isso ele entendeu a arte de nossa Márcia Haydée, considerada a maior bailarina/atriz do século XX. E ele foi indiscutivelmente moderno na sua concepção de dramaturgia em movimento.
Chamam a dança contemporânea de autoral, de dança onde existe uma total integração do intérprete com o criador. Pergunto: Onde terminava Cranko e começava Márcia Haydée? Um teria sido o que foi sem o outro em sua trajetória?
Dos doze anos em que dirigiu o Stuttgart Ballet Cranko deixou um legado que o tempo revelou. Fazem parte dele, entre outros coreógrafos, Uwe Sholz, já falecido, William Forsythe, Jiri Kylian e John Neumeier. Todos tiveram, não apenas uma sólida base acadêmica, mas, como Bausch, dançaram ballets clássicos. Vale dizer: quem estudou profundamente uma técnica como o ballet clássico vai conseguir re-processar, desconstruir tudo,mas nunca mais terá seu corpo zerado.
“Forsythe trabalha o movimento como uma arquitetura viva e tridimensional fazendo-o aparecer e desaparecer, se desequilibrar e se refazer, num ritmo vertiginoso, em infinitas operações que desconstrõem o que estava historicamente estabelecido como configurações do corpo .”
Isso dizem os analistas , porque minha experiência pessoal é totalmente prática e enxergo claramente a construção da técnica acadêmica que sempre amparou a criação de Forsithe, consciente de que ele pode a ela retornar em qualquer tempo. Se é que a abandonou.
John Neumeier é focado na preservação da tradição do ballet, mas confere-lhe uma estrutura dramática moderna. Revê clássicos da dança e da literatura: Hamlet, Othello, As you like it, Romeu e Julieta, Sonho de uma noite de verão, Morte em Veneza . A Dama das Camélias e Um Bonde chamado desejo, são obras-primas criadas para Marcia Haydée . Uma das criações de Neumeier foi Nijinski, em homenagem ao mítico bailarino . Neumeier parece ter a receita perfeita para equilibrar o trabalho experimental com a expectativa do público. Como outros contemporâneos, entre os quais Matz Ekk, revisitou vários clássicos do século XIX, obras eternamente recriadas.
De Jirí Kylián existe uma definição sintética : "Ontem é história, amanhã é mistério, mas o presente é uma dádiva. Eis porque ele é chamado de o 'presente'."
Kylián é tcheco, formado no Teatro Nacional de Praga, mas foi em Londres que conheceu os movimentos mais importantes de composição coreográfica. Desde 1973, quando fez seu primeiro trabalho para o Nederlands Dans Theater, teve início um casamento que, como diretor ou não, se prolonga até hoje. Quase uma unanimidade, é dono de uma assinatura coreográfica singular, que desafia categorizações ou rótulos, na medida em que mistura elementos de muitas fontes. Trabalha com pés descalços, sapatos de ponta, salto alto, sapatilhas, usa todos os níveis espaciais, vários estilos, exigindo dos bailarinos um preparo altamente eclético.
Foi, talvez, o primeiro criador a perceber a dicotomia implícita ao ballet qual seja: a plenitude da alma e da mente está inversamente proporcional à decadência física. Para não desperdiçar essa maturidade criou a companhia dos bailarinos de mais de 40 anos e, um pouco depois, outra, a dos extremamentes jovens, com sua ousadia e espírito desbravador, cada qual com um repertório próprio que pretende refletir e acentuar as 'Três dimensões da vida de um dançarino', como costuma dizer.
Kylian, por seu lado, já deixou um continuador na figura do espanhol Nacho Duato, ex primeiro-bailarino de sua companhia.
13 - Conclusão
Quando se reflete sobre os rumos do que se convencionou chamar de dança moderna, volto-me para Martha Graham e seu livro Memória do sangue. Logo de início ela rejeitou vigorosamente essa classificação para ela mesma: " A dança moderna" afirmou, "se torna obsoleta com excessiva rapidez. É por isso que sempre uso a expressão 'dança contemporânea' - da minha época. Jamais digo 'dança moderna'. Não existe tal coisa..." E adiante fala: " Me perguntam se é difícil para um bailarino clássico aprender minha técnica. As técnicas não são tão diferentes. Elas partilham uma mesma dedicação à dança; são como um arrebatamento, como uma energia..." Referindo-se a Maya Plissetskaia, protótipo da bailarina clássica, deixou escrito: " Toda dança é universal. Só existem duas danças: a boa e a ruim."
A modernidade ou contemporaneidade, como preferirem - no dicionário moderno é sinônimo de atual -, nos permite tudo, o que pode ser formidável ou péssimo. A confusão entre moderno e modernoso nunca foi tão presente. Pessoalmente, já não reconheço dança em muita coisa que vejo no palco ou em espaço chamados alternativos, não importa. Já assisti a um espetáculo em que a palestra matinal havia sido ótima e a performance à noite péssima. Ora, alguma coisa está errada se você tem vontade de dizer ao pseudo-bailarino: Por favor, deixe o palco porque os efeitos do computador são muito interessantes e você está atrapalhando.
A dança continua autônoma enquanto arte, como clamava Noverre, mas se integra cada vez mais ao teatro. Nesse sentido, merece reflexão a excessiva tolerância para com artistas que, em nome da modernidade, mesmo reconhecidamente talentosos em suas áreas, nunca se prepararam para dançar e se apresentam como artistas da dança. Não confundamos o teatro/dança de Bausch, executado por bailarinos mesmo, começando por ela, com qualquer tentativa de fazer da dança uma mera improvisação. Isso já seria um desrespeito. Desrespeito que, verdade seja dita, a dança nunca teve em relação a qualquer outra expressão de arte.
Por outro lado, exige-se dos bailarinos de Cranko, MacMillan, Petit, Béjart,uma visão moderna da vida para conseguir representá-los sem sérios equívocos de interpretação. Ou se revelam humanos para atingir os personagens que representam, se despojam do academicismo, do maravilhoso, do artifício que foi a marca do ballet do século XIX, ou só decoram o texto; não o interpretam.
Os passos da maioria dos inúmeros artistas, mencionados nesta palestra – tenho consciência de que seria impossível citar todos – construíram a história. Em relação ao presente, podemos nos voltar para nosso umbigo para enfrentar a globalização ou adotarmos uma postura de universalismo consciente.
Há tempos, no Projeto Raio X, proposto pela universidade na qual leciono, assistindo ao processo de criação de A/sé de Ana Vitória, vi como ela estava se voltando para a cultura afro-baiana para processá-la e transformá-la, com toda a sua formação européia, numa obra brasileira, claramente nacional, sem ser regional ou folclórica: é uma obra moderna ou contemporânea.
Atenção : todos os caminhos que mencionei baseiam-se na competência, no domínio absoluto do ofício de trabalhar com dança, na execução precisa dos movimentos criados, o que só pode ser atingido por bailarinos de fato, cujos corpos foram dignificados para estar no palco dançando. Como o de todos os coreógrafos aqui citados, e muitos, muitos, muitos outros. Pode-se encontrar momentos verdadeiramente artísticos em patinadores do gelo, pode-se misturar de forma sensível a dança de salão, o canto, o teatro, o circo, desde que se admita que o bailarino tem que saber dançar, que a dança é o meio de comunicação de artistas que se expressam sem palavras através do seu corpo, que a dança, cênica ou não, mas profissional, não é uma arte da improvisação e do diletantismo.
Gostaria de lembrar, melhor, propor, que destruir o passado como forma de construir o futuro, de fazer, quase que de forma permanente, do presente o passado, pode levar, nem à desconstrução, mas à destruição. No nosso caso, somos um país jovem, sem tradição de preservar a memória. E de cultura recente. É com dificuldade que mantemos o pouco que construímos. Quanto poderá, ainda, ser destruído em nome de modismos, transitórios, talvez, mas cujos resultados se revelam, por vezes, irreversíveis e demolidores?
Atualmente, técnicas e estilos se fundem em criações sem barreiras, por vezes geniais, mas, outras tantas, sem nenhum valor que não seja o de parecer inusitado, meros instrumentos de oportunistas com pouca base e muita desfaçatez
Nijinski disse no seu delírio lúcido: "estou sentindo através da carne e não do pensamento. Eu sou a carne. Eu sou o sentimento. Eu sou Deus em carne e sentimento."
Encerramos esta palestra com um pequeno trecho de “Silent Cries” de Kilyan, de 1986, e de “Remanso”, de Duato, de 1997.
Aos senhores, que me ouviram até agora, meus mais sinceros agradecimentos. Continuo nervosa, sem uma clara percepção de ter conseguido expressar o que tinha em mente quando comecei a escrever esta palestra. Preparei-me, ao longo da vida, para dançar. Falar, expressar-me através de palavras, sobretudo minhas próprias palavras, para mim, é sempre uma aventura. De toda forma, espero ter conseguido, ao menos, transmitir meu amor pelo ballet e minha convicção de que estamos diante de uma manifestação artística, não apenas genial, mas eterna, graças a Deus, em nome da nossa necessidade de conviver, para sempre, com a poesia em nossas vidas. Obrigada.

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Eliana Caminada é Orientadora e consultora, escreveu vários livros sobre dança, e responde pelas disciplinas História da Dança e Técnica de Ballet Clássico no Centro Universitário da Cidade. Professora convidada no projeto "Sons Dançados do Brasil" do Centro de Artes Calouste Gulbenkian, colabora com o jornal "Dança, Arte & Ação" e participa, como palestrante, jurada ou pedagoga, de festivais e mostras de dança por todo o Brasil. Foi bailarina do "Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro", primeira-bailarina do "Balé Guairá" e solista do "Ballet da Ópera Estatal de Munique".

Damas mágicas e selvagens – A grande festa dos mortos
JÁ atingido pela civilização européia, o esquimo diverte-se indo a uma reunião e dançando com as beldades dentro de poucas horas, tanto como outro homem qualquer. Contudo há ocasiões especiais em que dançar significa algo mais para êle do que simples diversão, quando assume uma qualidade profundamente religiosa e quase mística. Uma dessas ocasiões é a Grande Festa dos Mortos. É realizada pelos parentes dos falecidos, com intervalos de dez ou quinze anos, pois deve-se economizar alguma coisa, visto como dar presentes tanto aos vivos quanto aos mortos, é importante parte das festas.
Essa festa característica dura usualmente cinco dias. As almas dos falecidos já foram notificadas com um ano de antecedência. O primeiro e o segundo dia da dança são consagrados à recepção dos convidados de aldeias distantes e aos preparativos para a festa. No terceiro dia, todos os participantes reúnem-se no salão cerimonial. Os mortos são invocados por meio de um tambor e lâmpadas de azeite permanecem a arder para que os espíritos possam dar com o caminho. Para encorajar esses espíritos, os participantes, que envergam suas mais velhas e mais pobres roupas, fazem uma série de danças imitativas. Todas essas sugerem apropriadas maneiras de viajar. Por isso alguns fingem impelir um caíque, enquanto outros andam como se estivessem com sapatos de neve. Ao som do tambor, a bater continuamente, enquanto uma cantilena é entoada em voz baixa pelos participantes menos ativos, os dançarinos prosseguem numa carreira vertiginosa dentro do quadrilátero cerimonial. Isto simboliza o caminho sinuoso que os espectros devem tomar pela colina e pelo vale, afim de alcançarem seu destino. Essa dança mágica continua até certo tempo, dado como o gasto para a chegada dos espectros. Imediatamente, presentes de peixe e de roupas novas são distribuídos por todos os presentes. Os que usam o mesmo nome do defunto são olhados como seus representantes e recebem duplo quinhão.

A dança guerreira
Os índios americanos são grandes dançarinos. Como todos os povos primitivos, dançam por motivos mágicos e simbólicos, para adquirir coragem e assegurar a proteção dos espíritos. Quando estão prestes a partir para a guerra, metem-se a fazer uma medonha mímica, cuja finalidade única é amedrontar o inimigo a qualquer distância em que se possa êle encontrar. A famosa dança Guerreira, tantas vezes parodiada, pode ser descrita do seguinte modo:
Os dançarinos usando suas penas e empunhando suas lanças e suas achas, dividem-se em quatro grupos. Esses grupos sentam-se nos quatro cantos do terreiro da dança. A orquestra de tantas coloea-se um tanto à retaguarda Um rufar de tambores, seguido de três fortes batidas, é o sinal para começar. À terceira batida, os executantes pulam para o centro e brandem suas armas como se fossem lutar. Ouve-se um enorme alarido, depois o movimento vai-se tornando lento e os dançarinos começam a fazer a mímica da guerra. Furtiva e lentamente se adiantam para o inimigo, seguindo seus rastros, descobrindo seu esconderijo, e preparando-se para o ataque. Isso vai-se fazendo durante três voltas. Os tambores dão novamente o sinal, e os dançarinos pulam em simulada batalha, esquivando-se das flechas, atacando e desviando golpes. Todas essas ações, altamente individuais, são executadas quatro vezes em torno do círculo. Outro sinal é dado e os atores dividem-se em grupos de três ou quatro. Um é partido atacado, defendendo-se dos outros. Os tambores batem cada vez mais depressa, até alcançar o clímax, quando todos os combatentes se reúnem em compacto grupo, ao centro, brandem suas armas no ar, dão um tremendo brado e desaparecem rapidamente.

A dança da Chuva
Já se detiveram os americanos a considerar que os Peles Vermelhas possuem em suas danças uma forma de arte infinitamente maior do que a de muitas outras nações? Efetivamente, se um grupo de índios viajasse pelo mundo, executando a dança do Urso, a dança do Cachimbo Medicinal, a dança do Búfalo, a dança da Serpente Hopi, o Mistério do Alce, e suas outras numerosas danças cerimoniais e rituais, produziram, com suas máscaras grotescas e senis trajes ricamente variegados, uma sensação comparável à que Diaghileff produziu, quando nos trouxe do reduto moscovita o seu Bailado Imperial Russo.
Nos Estados Unidos, particularmente no Novo México e no Arizona, tem-se realizado um movimento para atrair visitantes aos Campos de Reserva dos índios e às aldeias, durante o tempo dos festivais típicos. Umas das cerimônias favoritas, assistida por numerosa multidão, é a dança da Chuva, dos Zunis.
Pode-se dizer que essa dança é executada por profissionais, se assim podemos denominar os sacerdotes da chuva que a ela se dedicam. Esses sacerdotes usam máscaras côr de turquesa, com longos penachos pretos de cabelos de cavalo, e saiotes de algodão e faixas pintadas de brilhantes cores. Seus corpos são também pintados de brilhantes desenhos. Uma matraca de casco de tartaruga é fixada na perna esquerda de cada dançarino. São eles auxiliados por numerosos palhaços, cuja finalidade é produzir um relevo cômico, e cujo principal ornamento, além duma tira em torno dos rins, é um saco avermelhado, colocado na cabeça. Esses palhaços participam da cerimônia da chuva, como uma espécie de contraponto da ação dos sacerdotes, isto é, têm que fazer o contrário do que fazem os sacerdotes. Estes são solenes, mas os palhaços são burlescos; os sacerdotes entoam um canto fúnebre, enquanto que os palhaços gritam e vociferam. Parece que essa mistura de comédia e de ação série é grandemente apreciada pelo auditório.
A cerimônia propriamente consiste numa encantadora sucessão de movimentos graciosos. O sacerdote principal conduz uma marcha processional, espargindo farinha de milho pelo braço direito de cada doisarino acima, passando pela testa e descendo pelo braço esquerdo, enquanto os outros sacerdotes entoam a canção da chuva. Adiantam-se em uma só fila, voltando-se primeiro a meio para a esquerda, depois para a direita. Três passos são dados para diante, três para fazer uma volta, três para voltar atrás e três para diante de novo. Dessa forma se movem, em forma de quadrado. Depois todos eles se alinham de frente para o auditório e cessam de cantar. Adiantando o pé esquerdo, inclinam os corpos para a direita, gritam, agitam suas matracas e as abaixam, com longo movimento do braço, quase tocando o chão e levam-nas depois até a boca. Repete-se esse movimento muitas vezes. Depois os dançarinos movem-se pelos quatro cantos do terreiro de dança, fazendo voltas individuais em cada canto. Finalmente se reúnem em cerrado encontro, gritam, matraqueiam e deslizam graciosa e silentemente para suas tendas.
A dança do Sacrifício Humano
Do Cabo ao Cairo e de Zanzibar ao Senegal, toda a África dança. Os palpitantes compassos da dança são tão naturais como a respiração, para os nativos do vasto continente negro. Cada paixão humana, medo ou desejo, é interpretada diferentemente pelos vários povos africanos, e não existe unidade em seu estilo de dança. A única generalização que se pode dar como exata é que a maior parte dessas danças é executada ao bater de tambores. Os tambores são o instrumento essencial de música na África. Cada tom, cada batida, cada ritmo tem seu próprio apelo emocional. Contudo os tambores apenas acompanham a dança, porque a dança é sempre mais importante do que a música.
Entre os milhares de danças africanas a escolher, a dança do Sacrifício Humano se salienta por causa de sua dramática intensidade. Relíquia dos tempos não distantes em que o sacrifício humano era real, e não mera pantomima, essa representação, pelos nativos de Danane, perto da fronteira liberiana, é tão realista que faz o viajante branco, que a presencia, arfar de horror.
A dança é executada por quatro meninos usando tangas e toucados em forma de mitra, e quatro mancebos musculosos, praticamente nus. A música é fornecida por uma orquestra de velhos, fantasticamente trajados, com os corpos eriçados de ossos de crânio, amuletos, contas, facas e várias armas mortíferas.
Os meninos ficam em cima duma esteira, meneando as cabeças sem cessar e executando saltos mortais e piruetas no chão. Depois os moços os reúnem e começam a atirá-los um para outro, como se fossem bolas. Batem-lhes nas cabeças com um movimento do pé para trás, fazem-nos girar segurando-os por um só braço ou tornozelo e por outra parte os jogam para lá e para cá, como se não fossem criaturas de carne e osso. Cada um dos homens tem uma faca. O clímax da dança é atingido quando um deles lança uma faca, enquanto o outro joga no ar um menino. A faca é tão bem atirada que passa entre as pernas do menino. Como os atiradores ficam dez passos aparte, podeis facilmente ver que extraordinária destreza e sangue-frio são necessários. Uma variação consiste em agarrar um homem e duas facas de pontas para cima. A criança é jogada sobre elas e o homem move os braços o bastante para apanhar o menino na
forquilha do cotovelo. Como toda essa cerimônia é executada com grande regularidade rítmica, chama-se uma dança, embora não haja passos de dança propriamente ditos. Mas na África é o que a dança transmite que é mais importante do que o batido dos pés e o movimento do corpo.
As dançarinas dos templos hindús
COMO toda a Índia está dividida em rígidas castas, não causa admiração descobrir que as dançarinas dos templos formam uma casta própria. Essas moças, raramente não passam hoje em dia de meras prostitutas, decaídas de sua antiga elevada posição de esposas dos deuses. dançam nos casamentos e diversões particulares, usando seus dourados saris, com pequenas campainhas de prata nos tornozelos, e diamantes e jóias nos pescoços e orelhas.
A dança para o hindú é muito menos questão de mover os pés e muito mais questão de agitar os braços e a cabeça. As moças são exercitadas desde a mais tenra mocidade, de modo a poderem deslocar o pescoço. Seus dedos são tão flexíveis que parecem não ter ossos. Além disso, aprendem todos os tradicionais gestos simbólicos, que expressam uma emoção, um modo, ou uma situação definida. Desde que cada simples gesto tem um significado, segue-se que cada dança conta uma história. Essa história pode ser compreendida somente por um auditório experimentado, ávido de aprender cada variação de um gesto da mão e cada movimento duma pestana. Uma tentativa de interpretar as velhas danças da índia para o mundo ocidental está sendo realizada pelo artista hindú.
Dança popular
DESDE que praticamente todos os países do mundo têm seu estilo próprio de dança, o termo dança popular está reservado ao tipo mais estreitamente associado a raças individuais e particularmente a secções rurais dessas raças. As mais interessantes das danças populares nacionais são as da Rússia, da Hungria e da Espanha. As danças desses países são caracterizadas por uma vitalidade, uma ênfase de ritmo e uma liberdade de movimentos que as colocam em classe própria. Ajunte-se a isso uma forte tonalidade de influência cigana no sentido do ardor e da paixão, e o resultado é um tipo de dança que provavelmente terá vida longa.
Uday ShanKar. Sua companhia alcançou extraordinário êxito na Europa.
A dança forma um dos mais importantes elementos da expressão religiosa hindú. Cada divindade, Siva, Krish-na, Lakshmi, tem uma dança ritual, baseada nas histórias, contadas em obras como os Upanishads. Siva, por exemplo, é olhado como o Primeiro dançarino, e o ator que o representa executa a dança da Criação, da qual o principal motivo é o arroubo do movimento.
As dançarinas Nautch são um grupo de dançarinas de templo cujo traje, compreendendo uma larga saia com lantejoulas, foi afetado por influências ocidentais. Na sua representação, prestam atenção ao batido dos pés mais do que é usual na índia. Essas dançarinas Nautch, juntamente com outro grupo chamado as Devadasis, representam importante papel, no permanente culto hindú do sexo, como força vital, mas sua situação social é muito baixa.
Essa notável dança popular é acompanhada por música igualmente notável. Muitos compositores famosos, Brahms, Liszt, Tschaikowsky, Albeniz se apropriam dessas toadas populares e delas fizeram imortais arranjos. Em todos aqueles três países a melodia, quando executada por camponeses, é usualmente acompanhada por um violino ou uma guitarra, enquanto que o ritmo é marcado num pequeno tambor ou tamborim. Na Espanha, a dançarina muitas vezes acentua o ritmo, tocando castanholas.
Quer seja um trepak russo, ou uma czardas húngara ou um fandango, bolero ou flamenca espanhóis, a dança popular é quase sempre meio de expressar alguma espécie de emoção. Isso é facilmente sentido pelos espectadores, que comparticipam, batendo o compasso com as mãos e gritando, como na Espanha, ou juntando-se à dança, como na Hungria. Quando tradicionalmente conservada por autênticos camponeses, e não simplesmente revivida pelas Sociedades de danças Populares, a dança popular é um exemplo inspirador do modo como as pessoas simples mostram sua alegria de viver.
A Historia do Bailado
QUE visões de adorável beleza não evoca a palavra bailado! Graciosas formas femininas em níveos trajes, girando delicadamente na ponta dos pés; Ana Pav-lova realizando os movimentos do Cisne moribundo; Nijinski dando prodigioso salto no ar e milhares de cenas semelhantes, executadas em teatros de todo o mundo por grandes artistas, amadores, e mesmo por crianças, todos cheios do ardor divino.
O bailado europeu tem uma longa e complexa história. Recua até os mais antigos tempos. Mas na sua forma atual descende diretamente das danças teatrais e da corte, que prevaleceram do século XVII ao século XIX. Geralmente falando, o bailado é uma modificação das danças, levadas pelos italianos às cortes da França e da Inglaterra durante o século XVI. Foi na França, especialmente que recebeu seu maior desenvolvimento, graças em grande parte à proteção real. Luiz XIV orgulhava-se extremamente de sua habilidade como dançarino, e não permitia que mesmo os mais sérios negócios de estado interferissem no seu exercício diário. Assinala-se seu reino pelo grande número de espetáculos e exibições de danças a que êle deu causa e em muitos dos quais tomou parte saliente. Seus sucessores e seus imitadores de outros países, também fizeram questão de animar a dança, de modo que pode ser razoavelmente dito que no velho regime todo nobre e todo cortesão consideravam a dança como uma prenda necessária. As danças de corte mais conhecidas hoje são o minueto, a gavota, a con-tradança e a quadrilha- No século XIX, quando a dança cortês se tornou importante na vida das mais elevadas classes médias, foram acrescentados passos como a polca, a mazurca e a valsa-
No século XVIII, lado a lado com a dança de corte, cresceu o bailado de ópera, mais propriamente executado por profissionais do que por distintos amadores. O nome mais comumente associado ao desenvolvimento desse gênero foi o do mestre de dança ítalo-suíço, Noverre cujas Cartas sobre a dança são olhadas como a Bíblia do dançarino de bailado. Esse homem estabeleceu e codificou as regras e os estilos de dança de seu tempo, prescreveu longo e árduo treinamento para quem queira ser dançarino de bailado, e influiu profundamente em toda a arte da dança até o dia de hoje.
O Bailado e a ópera prosperaram lado a lado na França. Tinham uma casa comum, sob a proteção real, a Academia de Música e dança, que é ainda O título oficial da ópera de Paris. Os bailados eram olhados corno parte integrante de todas as óperas e até o aparecimento de Wagner nenhum compositor jamais sonhou poder dispensar esse elemento importantíssimo. O Fausto, de Gou-nod, escrito no último terço do século XIX, chegava ao ponto de exigir meia dúzia de bailados. Wagner exibiu seu Tannhauser, na ópera de Paris, em 1861. Sua concepção do drama musical não incluía o bailado. De modo que, quando tentou apresentar sua nova ópera, uma cabala organizada pelos membros do aristocrático Jockey Clube, interrompeu o espetáculo. Wagner eventualmente comprometeu-se a inserir a dança de Venusberg, no primeiro ato, embora, tradicionalmente, um bailado jamais aparecesse antes do segundo ato, sendo o usual no terceiro ou no quarto.
No começo do século XX, o bailado quase entrou em decadência. Felizmente, uma série de acontecimentos, em especial a aparição do Bailado Russo, a influência de Isadora Duncan, o grande interesse pelo exótico e pelas danças orientais e os novos ideais do professor suíço, Jacques Dalcroze, tudo contribuiu para a renascença do bailado. Hoje não mais o concebemos como parte integrante da ópera. Efetivamente, o bailado se afirmou por si próprio, pois em nossos dias pagam-se belos preços por uma diversão noturna, em que o bailado seja o único elemento.
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O Imperial Bailado Russo
EM meados do século XIX, o Bailado Russo tornou-se, em verdadeiro sentido imperial, porque o imperador da Rússia deu-lhe prédio oficial no Teatro Marinsky. Famosos professores, importados da Europa Ocidental, preservaram as grandes tradições clássicas. Os nomes de Petipa, Legat e Cecchetti salientam-se entre eles. Sua influência se faria ainda sentir, quando menos pela influência ainda maior de seu sucessor, Fokine, considerado um dos maiores dançarinos de todos os tempos.
Foi só, porém, quando o Imperial Bailado Russo surgiu pela primeira vez numa excursão européia, que o mundo subitamente teve notícia do esplêndido trabalho realizado. Essa primeira excursão, feita em 1909, foi dirigida por Sérgio Diaghileff. O primeiro espetáculo exibido em Paris perante brilhante auditório internacional, inaugurou nova época na história da dança, e incidentemente mudou o caráter do Bailado Russo. Diaghileff era um gênio demasiado independente para não se sentir tolhido pelas mesquinhas invejas e pelas restrições dos dirigentes governamentais. Graças ao êxito de sua original aventura, pôde livrar-se do Teatro Marinsky. Com dinheiro levantado de várias fontes, organizou uma companhia própria, e conseguiu induzir alguns dos mais famosos dançarinos do Bailado Imperial a se juntarem a êle. Fokine era seu espírito dirigente e entre seus outros dançarinos contavam-se Nijinsky, Pavlova, Karsavina, Ida Rubinstein e Massine. Tratou também de formar um repertório de partituras, escritas especialmente pelos mais promissores compositores. Grande parte das mais importantes peças de Stravinsky foram compostas especialmente para seu bailado. Diaghileff tomou também grande trabalho com o preparo de seu guarda-roupa e de suas companhias, solicitando a colaboração de grandes artistas. Bakst e Benois são conhecidos, quase que exclusivamente, por causa dos trabalhos que realizaram para êle. Mas contou também com a colaboração de artistas tão famosos como Picasso, Matisse, Braque e Utrillo.
Desde 1910 até sua morte em 1929, Diaghileff apresentou séries e séries de criações coreográficas que agitaram o mundo artístico de Paris, Londres, Monte Carlo, Nova York e Buenos Aires. Scheherazaãe, Tarde de um faunot, O pássaro de fogo, Petrouchka, O rito da primavera e Galo âe Ouro são alguns dos mais importantes acontecimentos artístico da história moderna.
A contribuição da companhia de Diaghileff envolve uma mudança na concepção da dança. Emancipou os dan-sarinos de suas clássicas restrições. Em consequência, a dança se viu tão livre de laços acadêmicos como a pintura moderna e a música moderna. Diaghileff também deu ao mundo ocidental novo retrato da Rússia e do Oriente, acentuando suas características mais fortemente coloridas e mais esplendidamente bárbaras.
Por grande felicidade, a Grande Guerra e a Revolução Russa não acarretaram a extinção do Bailado Russo. As tradições do Bailado Imperial são continuadas, sob a direção dos sovietes. Quanto a Diaghileff, seu trabalho tem sido continuado, não importa se indireta ou desigualmente, em Paris, Londres, Monte Carlo e Nova York. A maior parte de seus dançarinos está ainda viva. E se não aparecem muitas vezes como executantes, tornaram-se professores e estão assim passando adiante a grande tradição para as vindouras gerações.
A tragédia de Nijinsky
ACLAMADO o Deus da dança, Vaslav Nijinsky gozou duma carreira, que se ergueu rápida e meteorica mente até as mais elevadas culminâncias, para cair depois no mais profundo abismo da tragédia. Embora esteja ainda vivo, é difícil escrever a seu respeito sem ser em termos do passado. Aluno na Escola de Bailado Imperial, esse jovem polonês recebeu imediata consagração dos mestres da dança. Seu êxito foi tão grande que o tornou o querido da aristocracia de S. Petersburgo. Era constantemente festejado e lisonjeado pelos nobres e pelos milionários, que procuravam satisfazer-lhe os mais leves caprichos. Muito cedo na sua carreira, atraiu a atenção de Diaghileff. Convencido de seu gênio, o grande empresário tomou-o sob sua proteção e tornou-se não só seu mes tre, como seu amigo devotado.
Em 1913, durante uma excursão pela América do Sul, Nijinsky casou-se com uma jovem componente da companhia, que sob o nome de Rornola Nijinska tem desde então alcançado êxito como dançarina e escreveu um livro a respeito de seu marido. Esse casamento não foi visto com bons olhos por Diaghileff, mas não o levou a retirar seu apoio a seu grande artista. Durante a primeira parte da guerra, Nijinsky e sua mulher foram internados na Áustria como estrangeiros inimigos. Mas, graças aos esforços de Diaghileff foram soltos. Nijinsky tornou-se chefe da companhia, quando Fokine se exonerou, e dirigiu o Bailado Russo em sua primeira excursão pelos Estados Unidos, de 1915 a 1916. A excursão foi um fracasso financeiro. Além disso, Nijinsky começou a dar sinais de mania de perseguição. Suas relações com Diaghileff se tornaram cada vez mais tensas, até que os dois gênios sentiram que era impossível para eles colaborarem ainda e se separaram. Poucos anos depois disso, Nijinsky perdeu completamente o juízo. Foi internado num sanatório suíço e ali está confinado até hoje.
De Isadora Duncan a Fred Astaire
EM 1905, uma moça californiana, cujo principal preparo para a dança consistiu em ler Rousseau, Nietzsche e Walt Whitman, partiu a revolucionar toda a arte coreográfica. Tirando sua inspiração de sinfonias, pinturas e grandes obras literárias, em breve cativou todas as grandes cidades da Europa e da América, pelas suas interpretações emocionais e a plástica liberdade de seus gestos. dançar para ela era uma questão de coordenar pensamento e espírito com o ritmo universal das coisas. Sua influência na dança moderna tem sido enorme.
Isadora Duncan não deixou um sistema. Essa lacuna foi preenchida por Jacques Dalcroze, suíço, cuja obra não tem ligação direta com a dela, mas é essencialmente aparentada à mesma, pela sua insistência sobre a universalidade do ritmo. Do método de Dalcroze surgiram as várias escolas germânicas, representadas particularmente por Maria Wigman, que trabalhou sob a direção de Rodolfo von Laban. De fato, seu método é uma combinação das idéias daqueles dois mestres. Ensina novo tipo de gesto, cujo simbolismo está baseado no efeito emocional do ritmo.
A essas duas influências e à do Bailado Russo, pode-se acrescentar o que se deve melhormente chamar estilo americano de dançar. Esse estilo é essencialmente negro na sua origem e no seu caráter, com ênfase do ritmo sincopado. Um de seus grandes expoentes é o sapateador Bill Robinson. Mas quem elevou essa dança ao nivel da arte foi Fred Astaire, cujas complicadas invenções, executadas com a facilidade e a graça dum mestre do passado, atraem igualmente o olhar e o ouvido.
Antes da Guerra, a dança era privilégio de ricos. Hoje o mundo está voltado para a dança. Jamais se viu tamanha curiosidade, tanto pelas tradicionais quanto pelas formas exóticas de dança, nem jamais houve maior número de professores particulares, com tão elevada clientela de mulheres, crianças e homens. "Concertos" de dança por amadores ou por famosos profissionais, como Haroldo Kreutzberg, Escudero, Uday Shan-Kar, Marta Graham e Angna Enters, são assistidos por numerosos e entusiastas auditórios. O Ballet de Monte Carlo faz excursões anuais com grande êxito. Em muitas das maiores cidades do globo têm surgido novos movimentos coreográficos.1 Tudo isso é a incontrovertível prova do domínio da dança sobre o comum das pessoas de nossos dias.

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